Estava esperando o sinal abrir para atravessar a Rio Branco quando ela se aproximou. Uma cigana de pele bem morena e cabelos negros, bagunçados. Me abordou com um pouco de agressividade, pegando no meu ombro. Assustada, me afastei dizendo logo que não queria, mesmo sem ela ter me oferecido nada. Não tenho dinheiro. 

Ah não, meu bem. Ela me disse com um sorriso que mostrava dois dentes de ouro. Seu cheiro era acre. É sobre ele. E apontou pro meu peito. Vai bater mais forte se você usar isso aqui. Tirou um frasco pequeno da bolsa de lantejoulas azuis. É afrodisíaco. 

Olhei rapidamente para o sinal. Continuava fechado. Não tenho dinheiro, repeti. Ela deu uma risada dourada. Fica como presente. Não cobraria de uma virgem. Colocou o frasco na minha mão. Mas use pouco, acaba rápido, antes do que você imagina, disse no mesmo instante em que o sinal abriu.

Meu coração deu um leve salto quando ela usou a palavra virgem. Eu tinha 23 anos e poucas pessoas sabiam dessa minha… condição na época.

Envergonhada e como forma de rebeldia, não usei o perfume por muito tempo. Por anos. Perdi a virgindade sem testar os poderes da fragrância.

Quando marcamos nosso primeiro encontro, numa quinta-feira, quis levar algum perfume para borrifar antes de te encontrar. Aquele pequeno frasco de vidro, esquecido no fundo do armário, era o único que não pesaria na bolsa.

Antes de sair do trabalho, borrifei uma vez atrás de cada orelha e nos pulsos. Passei demais, pensei me condenando.

E aí, no meio da noite, com o rosto afundado no meu pescoço, sua barba roçando minha pele, você disse com a voz rouca, gostei do seu cheiro.

Depois daquela noite, usava o perfume toda vez que íamos nos ver. Era um vidro pequeno, então, não usava em outras ocasiões. Sempre que você me dizia, entre beijos e carinhos, eu adoro seu perfume, eu respondia, eu só uso com você.

Se os perfumes tivessem vida, eu diria que a desse estava só esperando a gente acontecer para começar a respirar (ou pra revelar seu poder afrodisíaco).

Foi quando os problemas começaram que notei que ele estava quase no fim.

Uma mensagem não respondida, um fim de semana sem notícias, a primeira discussão, um pedido de desculpas, e o frasco cada vez mais vazio.

Até aquele dia, aquele último dia (que eu não sabia que seria o último), em que tive que virar e sacudir o frasco para conseguir algumas derradeiras gotas.

Passamos a tarde juntos. Eu estava feliz, acho (já não me lembro como ficava perto de você quando começamos a nos afastar). Mas me lembro de achar que, bem, talvez tudo voltasse a ser como antes.

Até que nos despedimos, naquela esquina perto de casa, e nunca mais nos vimos.

Já faz tanto tempo, às vezes parece tempo nenhum.

O frasco voltou para o fundo do armário. Vazio mesmo. Às vezes, a imagem da cigana volta à minha cabeça. Suas palavras também, use pouco.

Ainda não consegui jogá-lo fora.

Já é hora.

Pertfume.jpg

ju.jpgJuliana Borel é escritora e poeta. Pra ganhar dinheiro e pagar as contas é jornalista a maior parte da semana. Pra se inspirar gosta de ouvir Guns, trilhas sonoras e esbarrar por aí em pessoas interessantes. Em 2016, ganhou o prêmio literário Leia Comigo, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e é uma das autoras no livro de contos “Mapas Literários – O Rio em Histórias” (Rovelle/2015) e do livreto de poesias “Miudezas” (Cartonera Carioca/2016).
Tem um blog procurasepoesia.blogspot.com.br, onde escorre todas as suas experiências..

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